Ah Eh Ih Oh Uh

Gramática nas redes sociais

Todo mundo já deve ter visto algum fervoroso guardião da gramática de internet. Não, não é aquele amigo seu que te corrige com a intenção de te ensinar, mas aquela pessoa que sente prazer em corrigir pela alegada superioridade intelectual, sempre com alguma ofensa gratuita. Mas até mesmo esse tipo precisa ao menos diferenciar erros de simples internetês.

AdSense:
Imagem: Superinteressante

Eu mesmo vi um “amigo de Facebook” que, no auge de sua revolta com os erros de português alheios, resolveu criar um textão com diversas correções e muitas delas, brilhantemente. Mas lá no meio das inúmeras corretivas (mas/mais – a gente/agente – pois é/poiser), eis que surge uma indignação especial ao uso do “eh“, argumentando que o correto seria “É“, assim, acentuado.

Claro que o correto, o formal é É e ponto, não cabe nem discussão, …mas o “eh” é outra história e tem causa no começo da internet, lá nos Estados Unidos. Mas continua sentado que eu vou te contar!

 

Saiba que o “eh” é um filho primordial e legítimo do internetês brasileiro. Como um X-Men, o “é” sofreu mutação para salvar a nossa comunicação quando a internet ainda engatinhava e era conhecida como Usenet, uma espécie de rede social acadêmica.

A título de curiosidade, primeiro surgiu a Arpanet, uma rede para uso militar. Depois foi criada a Usenet, para fins acadêmicos e depois foi criada a internet 1.0. Finalmente evoluiu-se para a “web 2.0“, que usamos hoje (e já está em testes a web 3.0 e metaverso).

Pois bem, a ideia da Usenet surgiu em 1979, inspirada da Arpanet (de uso militar), sendo estabelecida nos Estados Unidos em 1980. Era uma rede muito simples, com severas limitações de velocidade, processamento, capacidade, etc. Os usuários, inicialmente todos do mundo acadêmico, publicavam e liam artigos, mensagens, divididos em categorias e etc. Os fóruns de discussão eram muito mais simples e havia uma limitação de caracteres, tal como o Twitter faz hoje, mas na época se tratava de extrema necessidade, explico:

  • 1) Necessidade de espaço: Imagine você que em 1973, um HDD “winchester” da IBM, de 60MB custava US$ 87.600 e somente em 1980 a IBM lançou o 3380 Direct Access Storage, que tinha 2.52GB e custava US$ 142.200. Hoje o seu menor pendrive tem ao menos o dobro de espaço e custa menos de US$7.
    Em resumo, o espaço em disco era escasso e caro. Desta forma, quanto menos caracteres fossem digitados, melhor.
  • 2) Necessidade de velocidade/performance: Além de extremamente caros, em 1980 os discos eram muito lentos, entregavam apenas 3 megas de arquivos por cada segundo (mbps), os discos atuais SSD superam a barreira de 600MBPS (sim, dá pra jogar CS). Os computadores da época também não possuíam capacidade de processar tantos dados em pouco tempo. Outro complicador era a conexão do tipo discada que era extremamente lenta. Em resumo, cada caractere a mais significava mais tempo para que sua mensagem fosse transportada e processada até que chegasse, legível, à tela do destinatário. Ou seja, mais uma vez, quanto menos caracteres, melhor.

Daí os americanos começaram a fazer uso das abreviações como “BRB”, “U” (you), “4” (for), “4u” (for you), “FYI”, “ASAP”, e várias outras abreviações pré existentes ou nascidas por força desta necessidade. Afinal, a frase “AS SOON AS POSSIBLE” possui 19 caracteres (espaços em branco também contam), ao usar ASAP, você economizaria, de uma tacada só, 15 caracteres!

 

AdSense:

Veja abaixo como era a Usenet em 1986, antes da primeira conexão do Brasil.

DECWRL netmap-1.2 by Brian Reid at Wed Dec 31 11:05:23 1986

 


INTERNET BRASILIS

Oito anos depois, em setembro de 1988, essa “avó da internet” chegou às universidades BR causando uma verdadeira revolução por aqui. Essa revolução pode ser conferida no livro “Internet: O que é, o que oferece, como conectar-se” (GUIZZO, Érico. Editora Ática, 1999). Não vamos discursar sobre a história da internet no Brasil, mas apenas resgatar o valioso registro da velocidade com qual o Laboratório Nacional de Computação Científica (RJ) conseguiu conectar-se à Universidade de Maryland, anote: 9.600 bits por segundo. Como comparação, hoje seu smartphone está conectado à rede 4G a pelo menos 10 megabits por segundo, praticamente dez vezes mais rápido e logo teremos o 5G aqui no Brasil, impactando ainda mais nessa diferença evolucionária. Mais uma prova de como tudo ainda era muito lento, muito caro e muito restrito.

Não nos restou outra alternativa a não ser criamos as nossas próprias abreviações: COM (C) / VOCÊ (VC) / TUDO BEM (TDB) / BOM DIA (BD).

Também passamos a realizar substituições de letras (AQUELE = AKELE / AQUI = AKI) e até mesmo adotamos os termos já padronizados e amplamente utilizados nos Estados Unidos, o “BRB”, “FYI”, “ASAP” e vejam só, o “LOL”. É isso mesmo, o “LOL”, apesar da hype “recente”,  já tem uma certa idade.


Tah, mas e o “EH”?

Para nós brasileiros existia um outro fator além das limitações de espaço de armazenamento e velocidade: A ACENTUAÇÃO GRÁFICA

Sim, pois a tecnologia era toda americana, feita para os americanos em seu idioma, o inglês. E assim, simplesmente não havia como acentuar nada e isso era um problema para todos nós, latinos.

Imagine o uso de palavras como coco, avô/avó, e/é, esta/está. Você sabe, a acentuação pode mudar todo o sentido de uma palavra e, portanto, de uma frase inteira.

Bem, para muitas palavras, o contexto resolve. Exemplo:

  • Meu avo completou 80 anos;
  • Minha avo completou 80 anos;

Claramente você percebe e consegue diferenciar quando se trata de avô ou avó graças às concordâncias de gênero

mas… como diferenciar o “E” do “É”?

Alguém, no passado, simplesmente adicionou um H ao final para, visualmente, destacar que ali havia acentuação. A ideia pegou e se disseminou, tornando-se padrão. Assim, na impossibilidade de usar o “É“, convencionou-se o uso do “EH“. Exemplo:

  • Mas e vc? (Mas e você?);
  • Mas eh vc? (Mas é você?);

E assim o H passou a ser usado também em outras terminações aonde era importante destacar uma acentuação (avoh, eh, estah, tah). PROBLEMA RESOLVIDO!

Os anos se passaram e a internet evoluiu juntamente com todas as tecnologias que a suportam, possibilitando o uso das várias formas de escritas, e claro, a acentuação gráfica. Aqui no BR, por exemplo, é comum que os teclados já sejam vendidos com a tecla “ç“, no famoso padrão ABNT2.

A evolução é tão notória que se antes era demorado e caro enviar um simples “oi tbd” para um amigo, hoje você pode enviar um livro inteiro para qualquer contato seu, em qualquer lugar do planeta em que ele esteja conectado, tudo isso em questão de segundos.

E é muito comum hoje, assistirmos vídeos, filmes, séries, ou mesmo jogarmos  em nossos telefones. Mas lembre-se de que, o que é comum hoje, era simplesmente impossível há apenas alguns anos atrás. E em 1990, era praticamente coisa de ficção científica.

 

Então por qual razão ainda usamos o internetês até hoje?

Bem, posso dizer que, posteriormente, já na época de ICQ e MIRC, mesmo quando já era possível acentuar, muitos simplesmente continuaram por força de hábito. Outros receberam computadores em casa e aprendiam a digitar na prática, não possuíam habilidade e, portanto, não possuíam velocidade e, nesse contexto, o internetês dá uma baita ajuda! Também faltavam a alguns, o conhecimento técnico básico sobre como configurar o teclado corretamente no seu idioma. De toda forma, acessar a internet era novidade para muita gente e, essa gente toda chegou e se deparou com essa forma de escrita que já existia, já estava lá.

Ora, se já era assim, o que fazer? Chegar e sair brigando com todo mundo para respeitarem as normas ou simplesmente abraçar o jogo como ele é jogado e adaptar-se ao meio?

Outro fator que devemos lembrar é que, antes do whatsapp, antes dos smartphones, somente haviam telefones com teclados NUMÉRICOS. Você lembra? você já ao menos viu um? Pois é! Imagina que mesmo só com teclado numérico já tinha gente que mandava textão!

Coragem, pois, cada número vinha com três letrinhas e para escrever uma mensagem curta você precisava pressionar várias vezes cada tecla numérica para construir as palavras, frases, textos. Aquilo não era legal e seria muito pior se não pudéssemos abreviar as palavras.

Posso assegurar que a internet no final dos anos 90 e no começo dos anos 2000 ainda era um ambiente desconfortável para os internautas, ao menos se comparando com a realidade atual, pois na época, era daquele jeito e só conhecíamos aquela forma.

As conexões discadas eram bem ruins e podiam cair a qualquer momento e era provável que demorássemos horas para se conseguirmos uma nova conexão. Também era caro se conectar, você pagava um provedor e ainda pagava pela chamada telefônica e era cobrado por tempo de chamada. Alguns podiam ostentar e conectar a qualquer hora do dia. Já outros, e eu me incluo aqui, só podiam depois da meia noite, pois era quando as empresas de telefonia só cobravam uma taxa por cada chamada e não por tempo de duração.

Ainda era caro e precisávamos de velocidade e objetividade, assim, digitar corretamente exigia muito mais tempo. O internetês começou a ganhar novos termos, novas formas, uma nova dinâmica conforme mais e mais pessoas aderiam à internet. Logo a frase “boa noite, tudo bem com você?” virava um “tdb?” e ao invés de “oi, vamos teclar?”, usava-se tão somente um “ker tc?”.

O LOL já é um quarentão!

Como você já sabe, hoje temos espaço de armazenamento abundante e velocidades de conexão cada vez maiores. Os sistemas operacionais suportam praticamente todos os idiomas e formas de escritas do planeta e os teclados vêm preparados e regionalizados conforme a necessidade de cada país. Então, seria natural que o internetês, que surgiu em meio às limitações iniciais, já inexistentes no mundo atual, simplesmente fosse desaparecendo conforme tais limitações deixassem de existir, até não fazer mais o menor sentido de seu uso nos dias de hoje.

Ocorre que, apesar de tudo, o internetês e suas abreviações não desapareceram, ao contrário, popularizaram-se mesmo entre os que já nasceram digitais e acreditam que é uma forma de comunicação particular de sua geração. Por outro lado, as pessoas de maior idade, que sequer tinham contato com o mundo tecnológico e que pouco ou nada sabem desta história, estão cada vez mais nas redes sociais e aplicativos de conversas  e, passado o choque inicial, também adotam o internetês para se comunicarem, causando a percepção de que caíram na “onda jovem”. Mas meu amigo, sinto-lhe informar que essa onda já é praticamente cinquentenária.


Por mais que essa forma de comunicação aqui da internet gere antipatia por parte daqueles que prezam pelo uso correto do idioma, o internetês já passou a figurar como uma forma de comunicação, prática, rápida, num mundo que exige cada vez mais velocidade. Não se trata de uso equivocado e errôneo do idioma, mas sim do uso adaptado ao meio eletrônico.

O internetês não é exclusivo do inglês ou do português, ele ocorre em escala global e independentemente de idiomas. É dinâmico, mutável e adaptável, de forma que a cada dia as pessoas criam novas expressões, abreviações objetivando atender suas novas necessidades e especificidades, popularizando-se cada vez mais.

Sabemos agora que o internetês tem sua razão de existir e por isso que eu, respeitosamente, discordo do meu “amigo de facebook” quanto aos AHs, EHs, IHs, OHs, e UHs. Espero que ele compreenda que existem erros de português, mas que o internetês não é erro de português! É uma forma de comunicação que foi muito necessária quando surgiu, mas que por ser tão eficiente, sobreviveu e deve continuar conosco por muito, muito tempo!

Então, o que nasceu de uma necessidade, permaneceu e evoluiu pela sua essência primordial de tornar as comunicações mais rápidas no meio em que são utilizados. O problema é levar esse hábito, essa linguagem, para o mundo não virtual, como por exemplo, para sua redação escolar, ou, como já vi, para o seu currículo. Aí não pode não.

[]s a tds (abraços a todos)

 


Fontes:

A estonteante evolução dos discos rígidos
Alex Cocilova, PCWorld EUA, 2013
http://pcworld.com.br/noticias/2013/09/13/a-estonteante-evolucao-dos-discos-rigidos/

Giganews’ Usenet History

Usenet History

Curlie.org
https://curlie.org/Computers/Usenet

Bruce Jones, archiver (1997). USENET History mailing list archive covering 1990–1997. communication.ucsd.edu

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.